domingo, 14 de fevereiro de 2021

fragmentos do caminho de comadres - por Anaíra

Caminho de Comadres - a poética da ancestralidade feminina em cena

- Os caminhos do corpo e os corpos no caminho

"Eu sou uma Índia bem pequenininha
Eu sou uma Índia bem pequenininha
E a morada dela é lá no pé da Serra
E a morada dela é lá no pé da Serra

Chamei pelos caboclo, os caboclo não agiu
Chamei pelos caboclo, os caboclo não agiu

Aí meu Deus do céu, ô ques caboclo mole
Aí meu Deus do céu, ô ques caboclo mole"

(Canto que aprendemos com as mulheres Tuxá em Inajá-PE)

Corpo feminino que resiste. Feminino que figura força. Que figura "figura". Corpo território. Que situa, que se inscreve no caminho, e é inscrito pelos caminhos. Corpo pedra mole, que se traça em grafismos, sendo corpo cachoeira. Canto corpo que situa, etinia, gênero, estatura, corpo...
"Sou uma Índia bem pequenininha"
Corpo território, que situa luta cotidiana e histórica, socorro, resistência, retomada. Ainda corpo cósmico, ligado à escuta dos assobios ancestrais dos Encantados. Corpo ainda diverso, Tuxá de Inajá, Kambiwá, Kapinawá... Corpo ainda disperso, diaspórico, desterrado, inundado...
No caminho, entre histórias, achamos esse corpo comum... Racializado, potente:
Ciganxs, indígenas, quilombolas. O comum lugar, corpo trajetória. Onde ressoa? O tracejar das diásporas pulsa nas nossas cartografias. Rotas saltam. Ancestralidade nômade que caminha nossos corpos, se busca, se aquilomba, resiste.


As ancestrais e o útero amplo da Mãe Terra
- O comadrísmo como cosmovisão

A Lua e a Terra são nossas comadres, elas nos ajudam a parir e a criar. O comadrísmo é uma resistência assim, nos dá chão e luz. Cuidado que pode ser colo, conselho ou carão; parceria que nos estrutura. É uma conversa que pode bem não ter palavras, um café, um chá, uma solução... A permissão de um respiro, de um suspiro

Ainda amadurecendo essa conexeção uterina. Minhas avós. Minha mãe em mim. Marcolina, Guilhermina, Rita, Zefa, Clenice... Essa a linhagem da Mãe. Mas também tenho sentido minhas avós paternas: Maria, Joana, Ana, Adelaide... Nomes que chegam com um domínio, uma intensidade, uma energia. Cada qual um mapa. Minha mãe deixou alguma coisa mapeada para mim; heranças profundas, karmas, fardos, pirâmides... Tesouros escritos, coisa que ela mapeou, coisa que contava, coisa que habita algum limbo dentro. Tento ordenar os espaços. Preciso realmente de um mergulho sutil. Ouvir os sopros desse além útero das ancestrais. Busco o colo generoso da minha mãe Clenice, sinto ainda esse não lugar. Tento me permitir um respiro luto nesse amor gigante. Sonho apressado, sonho detalhado. Me perco. De repente procuro a força de Marcolina, minha trisavó indígena. Quem era ela? Que desterros é amores terá vivido naquele sertão. Seu filho Elói casou com Guilhermina, meus bisavós. Fugiram pra casar. Guilhermina era branca e a família dela não queria ela com um caboclo. Depois dos netos a família perdoou a fuga. Não conheci nenhum desses. Rita, minha vó, era a filha desse casal fujão. Uma mulher de pele leitosa e de cabelos negros, muito beata, dizem que tinha partos difíceis e por isso veio morar na rua, na cidade, mesmo assim chegou a ter 11 filhes, tendo uma delas, Clemilda, morrido ainda bebê, um pouco depois de minha mãe nascer. Imagino o que minha vó Rita deve ter sofrido. Minha mãe tinha mágoa dela. Os contextos não eram leves para as mulheres naquela época, mas vejo muita força nas mulheres que vieram antes de mim. Minha mãe teve na sorte a presença esteio de Josefa Martinha da Conceição, minha vô Teta, mulher negra, cozinheira da casa dessa família que passou a cuidar de minha mãe como filha. Não lembro da construção de um laço efetivo entre mim e minha vó Rita, a memória que tenho é de uma mulher já muito idosa, cheia de energia contida, mas sem juízo certo. Já minha vó Teta, Zefa, lembro muito, das histórias que contava, dos detalhes de seu corpo próximo, do alimento, de seu jeito imponente de realeza e do amor firme que me expressava com posse. Minha mãe me chamou Mahin em homenagem a Luiza Mahin, mas uma homenagem a essa matriarca que não baixava a cabeça, uma alusão a resistência preta que buscou saber e expressar. Já o nome Anaíra ela colheu em uma canção que exaltava as raízes indígenas Latina Americanas, para que não se perdesse no tempo a sua raíz indígena, sua bisavó Marcolina mã de seu avô "Pai Elói". Foi esse mapa do tesouro que ela quis me dar, essa árvore chave, de afetos e desafetos que gerou a família que nos fez rama. Ela buscou nesse amálgama a assunção das "fragilidades" dessa "família importante", da branquitude assaltante às raízes invisíveis, invisíbilizadas, às linhagens matrísticas, indígenas, e agregada. Vejo muita beleza em sua busca, vejo tristeza e desamparo em sua história, mas acima de tudo vejo amor e força, muita. Assim, sigo sentindo minha mãe na família que ela me situou, "aqueles que partilham das lutas boas da humanidade". À essas ramagens ela quis dar luz, e me situou no corre dessa água.
Desse modo, o projeto "Caminho de Comadres" foi um reencontro, um passeio-vicência pelos aspectos mais profundos da ancestralidade, e também de uma ancestralidade mais ampla, tão rara e comum, intrínseca, cosmologia que nos compreende, ainda que diversos, e que seja extremamente necessária essa afirmação plural, mas ainda no olhar trascendente, onde o espelho real nos coabita. Onde os bons dançam ritmados no pulso da Terra, na força dos Encantados, na benção das ancestrais.


- Os trançados das nossas raízes

Trinados e trançados, muitos fios. Cordões de um brinquedo antigo. O brinquedo brincadeira, não o objeto apenas, mas aquele brinquedo que se faz brincando. As nossas raízes são os cabelos das ancestrais na terra, nossas heranças trançadas, nas bonecas de agave das artesãs de Conceição das Criolas, nas pequenas abayomis da professora Lourdinha. Nossas tranças, nossos cabelos mexidos, abençoados, no instante com cara de eterno, das mãos da mães, das irmães, das avós. Amor tem cara de eternidade, de mãe. Tem um tempo, que  a gente pensa que mãe nunca se acaba. Assim foi esse caminho, de trançados semi eternos; hoje lembranças que vasculhamos, tesouros aos quais recorremos para seguir nutridas. Raízes, copas, reza: são trançados da Terra. Nossos corpos vestem essa renda vertida da Terra, vestido dos corpos, narrativas-fios de nossas tranças. Que encontramos nesses corpos Terra? Pergunta que nos fazemos rebuscando-nas, mulheres selva. Passados 2 anos, nossos corpos tempo, já morreram um pouco com as mortes que vieram, de mãe, de pai... Renascerem e morreram: com cheganças de sobrinhos netos, com partos naturais hospitalares, com pandemia, com desenlaces... Que nossos corpos tramam hoje? Quando refazem esses caminhos, recartografando-os, mapas de tranças versos, teia de muitas raízes?... Situar importante, bom e doído, mexe por dentro, como gravidez. Trama complexa de peles, tocando tocas, almas, trocas transcendentes que acham ressonância. Ovos sementes, essa gemas da Terra ainda eclodem dentro, nas falas das outras, nos gestos guardados, em de nós, corpo-trânsito, arca-cigana. Emaranhadas buscamos novamente a abundância desse mergulho nas algas; buscando ordená-lo, dar luz a esse gestar comprido. Desse modo também cumprir nossos elevados acordos com os caminhos comadrísticos, com a existência fêmea no tempo arte, amplificando-nas ao dia ancestral da Mãe Terra.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Veia

Quase nos tiram nós
de nós mesmas.
Quase...
 
Investigo-nas,
nós mesmas.
Minhas velhas,
nas minhas veias.

Quando nos fizeram rivais?
Quando nos fizemos rivais?
Umas das outras...
Panteras contra lobas,
onças versos raposas,
vacas versos touras...

Em que lua deixamos de lunar? Reconhecer nossas avós, bisavós,  tataravos?...
Em que data longínqua essa voz primeiro nos faltou? e ecoa esse nó na gola,
de espartilho no ventre, de grilhões...

Quando nos perdemos no caminho? 

Será que nos perdemos?

Em quais gestos nosso pulsar permanece, essa potência, nossa alquimia, nossa força?

Eramos Amor e dançaram-nos
entre brasas.
Nos fizeram duvidar de nosso fogo,
nosso brilho, nossa luz.
Quiseram destruir nossas conexões
Nos ataram, escravisaram, apedrejaram, nos atearam fogo
e nos dissolveram...

Como fumaça, pranto da terra
Subimos as nuvens e desabamos..
Fomos nuvens e caimos.
Retornamos lavadas
E lavando...
Lavandas, capins todas,
lanceadas, cheirosas.
Embebemos a terra de nossa força
Eramos ela, nos sabiamos.

Eramos e somos, sementes, feijoes, espigas cheias, milho, milhares, mulheres da materia mineral, gemas da terra, soma da Terra Mãe.

No magma fervente, nos encontramos
Vaporosas... Criamos sobre as águas novas terras. Apesar da nossas dores, criamos. Criamos, com nossas raivas legítimas, criamos coragem esgarcando traumas, abocanhando a raiz dos medos...

No encontro nosso, de "nosotras", vimos nossas faces variadas, nossa metas em metamorfoses... umas colhendo as outras, entre aspectos da Mãe.

A "Abuela" maior fumando nossos espíritos...

E infinitamente fomos renascendo, remanescendo... chocalhos de nossas sementes... Abrimonas em circulares, em espirais...
Nossos cantos de mãos dadas...

Cada vez que cada mão de encontro acolhe outra,
leva, e leve a roda firme flutua.

Gira redemoinho de água
e mulher moída move.

Encontro santo, somos ela,
fêmea velha da Terra, mãe-avó.

Carnes, pelos, ossos...
A morta que sempre revive.
Seios, sêlos, elos, sangues...
Energia vermelha de Terra,
que lava e adentra a terra...
Rama, rio, veia.
Velha viva que nos remoça,
Sábia velha que nos encanta
Nos faz sabiás!

Cumade Anaíra Mahin

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Ilumina nossa estrada!

Pirilampo 

Ô pirilampo, ilumina o meu caminho
Ilumina a minha estrada, ô pirilampo
Ilumina o meu caminho

Vou caminhando, e a estrada é escura
Mas na luz desse pequeno pirilampo
Vou me sentido segura

Vou caminhando, vou seguindo meu destino
Nessa estrada tem poeira, pirilampo
Pés descalços de menino

(Canção final da apresentação das Ciganas do Egito)

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